quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Complexo de Roberto Carlos

A amizade e o fundamento subjetivo das redes sociais

Márcia Tiburi*

“Eu quero ter um milhão de amigos” é o famoso verso da linda canção “Eu Quero Apenas”, de Roberto Carlos. Adaptado aos nossos tempos, o verso representa o anseio que está na base do atual sucesso das redes sociais. Desde que Orkut, Facebook, MySpace, Twitter, LinkedIn e outros estão entre nós, precisamos mais do que nunca ficar atentos ao sentido das nossas relações. Sentido que é alterado pelos meios a partir dos quais são promovidas essas mesmas relações.
O fato é que as redes brincam com a promessa que estava contida na música do Rei apenas como metáfora. O que a canção põe em cena é da ordem do desejo cuja característica é ser oceânico e inespecífico. Desejar é desejar tudo, é mais que querer, é o querer do querer. Mas quem participa de uma rede social ultrapassa o limite do desejo e entra na esfera da potencialidade de uma realização que vem tornar problemática a relação entre real e imaginário. Se a música enuncia que “eu quero ter um milhão de amigos”, ela antecipa na ala do desejo o que nas redes sociais é seu cumprimento fetichista. E o que é o fetichismo senão a realização falsa de uma fantasia por meio de sua encenação sem que se esteja a fazer ficção? Torna-se urgente compreender as redes sociais quando uma nova subjetividade define um novo modo de vida caracterizado pelo que chamaremos aqui de complexo de Roberto Carlos.
Tal complexo se caracteriza pelo desejo de ter um milhão de amigos no qual não está contido o desejo de ter um amigo verdadeiro, muito menos único. A impossibilidade de realização desse desejo é até mesmo física. Não seria sustentável para o frágil corpo humano enfrentar “um milhão” de contatos reais. Na base do complexo de Roberto Carlos está a necessidade de sobrevivência que fez com que pessoas tenham se reunido em classes sociais, famílias, igrejas, partidos, grêmios, clubes e sua forma não regulamentada que são as “panelas”. Um milhão de amigos, portanto, ou é metáfora de canção ou é fantasmagoria que só cabe no infinito espaço virtual que cremos operar com a ponta de nossos dedos como um Deus que cria o mundo do fundo obscuro de sua solidão. Complexo de Roberto Carlos, de Rei, ou de Deus…

Questão fantasmagórica
A questão é da ordem do imaginário e de sua eficiente colonização. Não haveria o que criticar nesse desejo de conexão se ele não servisse de trunfo exploratório sobre as massas. Refiro-me às empresas de comunicação digital que usam o desejo humano de conexão e comunicação como isca para conquistar adeptos. Amizade é o nome dessa isca. Mas o que realmente está sendo vendido nessas redes se a amizade for mais que isso? Certamente não é a promessa de amizade, mas a amizade como gozo: a ilusão de um desejo realizado. E quando um desejo se realiza? Apenas quando ele dá lugar à aniquilação daquilo que o impulsionava.
Logo, o paradoxo a ser enfrentado nas redes sociais é que a maior quantidade de amigos é equivalente a amizade nenhuma. A amizade é como o amor, que só se sustenta na promessa de que será possível amar. Por isso, quando se sonha com o amor, ele sempre é desejo de futuro, no extremo, de uma eternidade do amor. O mesmo se dá com a amizade. Um amigo só é amigo se for para sempre. Mas quem é capaz de sustentar uma amizade hoje quando se pode ser amigo de todos e qualquer um?
De todas as redes sociais, duas delas, Orkut e Facebook, usam a curiosa terminologia “amigo” para nomear seus participantes. Certamente o uso da palavra não garante a realidade do fato, antes banaliza o significado do que poderia ser amizade, como mostra o recente filme A Rede Social (The Social Network, 2010), dirigido por David Fincher. O filme não é apenas um retrato de Mark Zuckerberg, o jovem e bilionário criador do Facebook, mas uma peça que pode nos fazer pensar sobre o sentido que nosso tempo digital dá à amizade.
Mark Zuckerberg, como personagem do filme, é o sujeito excluído de um clube. Dominado pelo básico desejo humano de “fazer parte”, ele decide criar seu próprio clube. No filme, ele consegue ter milhares de “conectados” – na realidade o Facebook hoje conecta 500 milhões de pessoas ou “amigos” – e perder seu único amigo verdadeiro, Eduardo Saresin. A amizade é a básica e absoluta forma da relação ética, aprendida como função fraterna no laboratório familiar e na escola; ela é uma qualidade de relação. Tratá-la como quantidade é a autodenúncia de seu fetiche e de sua transformação em mercadoria. O valor do filme está em mostrar a inversão diante da qual não há mais nenhuma chance de ética: um amigo não vale nada perto de milhões, como uma moedinha que perde seu valor diante de um cofre cheio. Amigos transformados em números não são amigos em lugar nenhum, nem na metáfora de Roberto Carlos, que serve aqui para denunciar criticamente o mundo do qual somos responsáveis junto com Mark Zuckerberg.

* Márcia Tiburi é filósofa e já publicou diversos livros entre eles “As mulheres e a Filosofia”, “Diálogo sobre o Corpo”, entre outros. A matéria foi publicada em 07 de fevereiro de 2011, na Revista Cult, edição 154.

PS: Esse artigo foi indicado pelo aluno Lyard Ferreira, que faz o curso de Linguagens Midiáticas.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Jeff Gomez sobre transmedia storytelling: ‘As mídias sociais estão em sua infância’

Em entrevista exclusiva para o site do Multishow, produtor de Avatar fala do poder do público nas narrativas transmídia e na aproximação com as marcas

Por Andréa Thompson*

Jeff Gomez é o midas da narrativa transmídia. CEO da Starlight Runner Entertainment, já palestrou no Futures of Entertainment, prestigiada conferência do MIT, em Boston, e expandiu o universo ficcional de Avatar, Coca-Cola, Piratas do Caribe e Hot Wheels (Mattel) a diferentes plataformas de mídia: celular, videogame, romance, história em quadrinhos, filme, programa de TV...
Poderoso, certo? Mas extremamente simples e boa praça. Um artesão de ideias férteis (e lucrativas) com jeitão de menino apaixonado por RPG. Foi despojado de qualquer pompa que Jeff nos concedeu esta entrevista exclusiva, de carona com o programa Bastidores e com sua passagem pelo Brasil para uma série de palestras.
Jeff fala sobre transmedia storytelling, recuperação da indústria fonográfica, engajamento nas mídias sociais (e como as marcas e grandes estúdios ainda não sabem tirar proveito do buzz) e sobre... você! Afinal são a sua participação e a sua história que vão turbinar este negócio.

Com a tecnologia 3D e as narrativas transmídia, a indústria cinematográfica vem se recuperando frente à pirataria. E a indústria fonográfica? Como o mercado da música pode sair da UTI e voltar a respirar?
Jeff Gomez: Temos assistido à indústria da música bem de perto e temos fortes interesses. Muitas gravadoras vieram até a Starlight Runner para saber mais sobre transmídia, mas elas não entendem muito bem ou não encontram motivos para pagar por isso. Não acreditamos que a indústria da música vá conseguir sobreviver sem fazer uso das multiplataformas de mídia. O jeito de se fazer isso é conectar o artista, no nível da gravadora, com o público, usando o mesmo conteúdo que já usam para o marketing do artista, mas também colocando o artista mais acessível ao público, construindo uma nova estrutura para que essa comunicação vá e volte.

Qual é o futuro da colaboração do público via mídias sociais?
Jeff Gomez: As mídias sociais estão em sua infância. O que é legal nisso é o jeito com que as mensagens e a narrativa são comunicadas instantaneamente nos dois sentidos, entre dois indivíduos, mas também, no futuro, como as histórias vão integrar os pensamentos e contribuições de dezenas, centenas ou milhares de pessoas, que vão criar tapeçarias de narrativas juntamente com o contador de histórias para criar universos ficcionais. Isso vai ser muito legal de se assistir. Para mim, o que é interessante tecnologicamente é o Google Wave, porque está permitindo que se crie essa cooperação criativa.
Mas o buzz criado acaba pulverizado, disperso e pouco aproveitado do ponto de vista do negócio. Como é possível monetizar a participação do público?
Jeff Gomez: Essa é uma grande preocupação minha: o fato de que os estúdios não tomam posse da conduta com que devem lidar com os fãs. Quem é dono do Youtube? Eu não sei, mas não é a Fox, certo? A 20th Century Fox é dona de Avatar, mas eles não criaram uma forma para que os fãs pudessem se expressar com esse tipo de conteúdo. Se isso for feito, essa plataforma pode ser convertida em dinheiro. Não será mais a menina gordinha) e seus 500 amigos; será cada tipo de fã de Avatar que virá a você, porque a plataforma correta vai estar sendo providenciada para que ele se comunique. Isso deve ser feito. A Fox não fez isso com Avatar, a Paramount não fez isso com o novo Star Trek, a Marvel não está fazendo isso com o novo Wolverine, com o Capitão América, com os novos filmes de super-heróis. Alguém vai ter que começar a fazer isso, porque é isso que vai dar dinheiro.

Transmídia é só para ficção? Como se constrói uma narrativa transmídia para um reality show, por exemplo?
Jeff Gomez: Não é só para ficção. Sim, a noção de história e ficção foi muito do que falei hoje, mas acredito que a ficção seja apenas uma arena em que você ensaia para a realidade. Também acredito que a transmídia vá atingir um poder verdadeiro e um verdadeiro impacto quando sairmos da ficção e entrarmos na realidade. Escrevemos as notícias e fazemos delas entretenimento e engajamento. Deve haver um jeito de se organizar a narrativa de não-ficção, realidade ou até mesmo educação. Não acredito que os adolescentes vão deixar de engravidar porque há um panfleto em seus celulares. Mas se há a história de uma adolescente que é como elas, que fala para elas, que serve de identificação para elas, que está se esforçando nesse assunto e que talvez faça escolhas que o público não deve ter pensado, então elas podem pensar: "Essa é uma escolha interessante, posso fazer essa escolha". E aí talvez elas não engravidem.

Se você fosse um avatar, o que faria para salvar a nossa Pandora?
Jeff Gomez: Se eu estivesse em Avatar, eu me relacionaria com as pessoas do filme, porque um dos elementos mais poderosos é a habilidade que temos de “ver” uns aos outros. Eu adoraria ter o poder de fazer as outras pessoas “verem”. Ver sem preconceito e sem julgamento. Apenas ver o que está lá para que tomem decisões mais pensadas sobre a vida. É esse o poder que desejo. De vez em quando eu faço isso.

Se você pudesse escolher uma coisa, qualquer coisa, em uma vending machine, o que escolheria? Coca-Cola não é uma opção.
Jeff Gomez: Tenho uma menina pequenina que nunca pega o que quer na máquina de venda automática. Tem sempre a imagem e ela não pega o que quer. Gostaria de uma máquina em que pudesse escolher o brinquedo que quisesse; então eu daria para a minha pequena.

* Andréa Thompson é jornalista e atualmente trabalha na empresa Globosat. Fez essa entrevista para o Canal Multishown dia 19 de fevereiro de 2010.

PS: Essa reportagem foi indicada pela aluna Carolina Fiaschi, que faz o curso de Linguagens Midiáticas.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Novos clássicos em quadrinhos

Com o crescimento da adoção por escolas públicas e particulares, editoras investem em adaptações para HQ de clássicos da literatura

Raquel Cozer – O Estado de S. Paulo*

O Pagador de Promessas, de Guazzelli

Clara dos Anjos, a personagem-título do último romance escrito pelo carioca Lima Barreto (1881-1922), demorou décadas para tomar forma. Nasceu numa versão rascunhada em 1904 e ficou de lado até 1921, quando o autor decidiu retomar a história, concluída no ano seguinte e publicada mais de duas décadas depois, em 1948. Em julho próximo, uma quarta etapa desta lenta evolução chegará às livrarias pela Companhia das Letras. Trata-se da versão em quadrinhos roteirizada por Wander Antunes e ilustrada por Marcelo Lélis, e que sinaliza uma forte entrada da editora numa disputa cada vez mais acirrada: a de adaptações de clássicos da literatura, especialmente a brasileira, com o objetivo de adoção por escolas das redes pública e privada.
Com duas adaptações traduzidas previstas para este semestre – A Divina Comédia, de Dante, por Seymour Chwast, e Na Colônia Penal, de Franz Kafka, por Sylvain Ricard-Mael -, o selo Quadrinhos na Cia está em negociações com artistas e escritores para outras versões de obras nacionais, segundo o editor André Conti: “Há mais projetos em andamento. Um selo tem que ser saudável, e uma das maneiras de um selo ser saudável é ter livros para adoção em escolas.”
Por saúde, entenda-se retorno financeiro. Embora o selo de HQ da editora paulistana tenha emplacado grandes lançamentos desde 2009, quando foi criado, a venda para o governo é garantia de tiragens até dez vezes maior que as usuais, estas em torno de 2 mil ou 3 mil exemplares. Além disso, obras baseadas em clássicos da literatura têm mais chance de serem escolhidas para uso em escolas particulares – o que garante as vendas de tiragens inteiras, mesmo que não tão grandes quanto as adquiridas pelo governo.
Não que quadrinhos com roteiro original também não venham sendo beneficiados pelo Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE), que selecionou 38 títulos em HQ ou imagem dentre os 300 a serem distribuídos para uso em aula neste ano. Os eleitos incluem adaptações como O Guarani e O Cortiço (Ática), mas também as sagas de heróis Necronauta (HQM), de Danilo Beyruth, e Demolidor, o Homem sem Medo (Panini), de Frank Miller e Romita Jr.
Mas, num momento em que o gênero apenas começa a superar o que o quadrinista Eloar Guazzelli define como preconceito histórico, as HQs derivadas de clássicos assustam menos por envolverem literatura. “Elas formam um caldo de cultura em que as crianças crescem e ampliam horizontes”, avalia o autor, que já adaptou O Pagador de Promessas (Agir), de Dias Gomes, A Escrava Isaura (Ática), de Bernardo Guimarães, e Demônios (Peirópolis), de Aluísio Azevedo.
Embora o PNBE tenha sido instituído em 1997, HQs só passaram a ser adquiridas para uso em sala de aula em 2006. A possibilidade de venda para os governos federal e estadual levou editoras a prestar atenção nesse nicho.
Foi no ano passado que se tornou notável o número de adaptações em quadrinhos. A Companhia Editora Nacional, que entrou nesse mercado em 2005, publicou em 2010 sete de seus 15 títulos do gênero. A DCL, após o sucesso de Domínio Público (2008), com versões de vários autores, comprou no ano passado uma coleção com sete clássicos e criou o selo Farol HQ, disponibilizando, entre outros, Robinson Crusoé e Moby Dick – só este último teve 25 mil cópias distribuídas para escolas públicas e 9 mil para livrarias e colégios particulares. Para 2011, a editora prevê 12 publicações do gênero, incluindo suas primeiras adaptadas por artistas brasileiros.
“A aceitação de HQs na escola é fenômeno novo. Três anos atrás, ouvia-se que era melhor investir em prosa. Hoje é possível lidar com essa linguagem diferente. Quando o governo validou os quadrinhos, as escolas particulares passaram a rever seus conceitos”, diz Daniela Padilha, editora da DCL. “Muitas vezes, os professores é que perguntam se não vamos lançar tal título, e então avaliamos.”
Responsável pela publicação de um dos maiores sucessos dessa tendência – O Alienista, com ilustrações e roteiro de Fábio Moon e Gabriel Bá, vencedor do Prêmio Jabuti de livro didático ou paradidático em 2008 e hoje com quase 100 mil exemplares vendidos - o Grupo Ediouro amadureceu o método de produção. “Começamos com o trabalho de adaptação e preparação de texto dentro de casa. Analisamos com muito cuidado o texto, para que não perca o ritmo nem o estilo, e até a pertinência do tema em aula”, diz a diretora editorial Leila Name.
Para este ano, o grupo prepara seis títulos, a começar por Pedro Mico, de Antonio Callado, para maio. Outros três, de autores contemporâneos e com os quais o público mais jovem já se identifica, também prometem virar sucesso: Morangos Mofados e Onde Andará Dulce Veiga, de Caio Fernando Abreu, e Mandrake, de Rubem Fonseca. “O formato renova o público leitor. Tem garotada lendo Machado de Assis com mais entusiasmo. Uma leitura difícil como Os Sertões torna-se mais palatável”, diz Leila, referindo-se à adaptação de Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa que chegou às livrarias no fim de 2010.
É justamente o discurso de porta de entrada para a literatura o que mais alimenta críticas contra as adaptações. “Não acredito que alguém vá ler Dom Casmurro só porque leu Machado em quadrinhos antes. O sujeito vai se sentir desobrigado a ler”, diz Thales Guaracy, diretor editorial de ficção e não ficção da Saraiva, responsável pelos selos Benvirá, Caramelo e Arx, que, no ano passado, publicou Frankenstein e Histórias de Poe. “Não foi um grande negócio. Não vamos fazer mais”, diz.
Para o professor de literatura brasileira da USP Alcides Villaça, a questão é mais simples. “Literatura e quadrinhos são formas narrativas diferentes, linguagens que têm valor em si mesmas.” Villaça é a favor do uso de HQs em aulas, mas não como substituições às obras, e sim dialogando com elas. “Não gosto da ideia de “porta de entrada”. O professor deveria definir o âmbito das linguagens, respeitando ambas.”
A argumentação é simples: na literatura, a articulação verbal é fundamental, enquanto na HQ ela não é central. Usar uma no lugar da outra seria, então, como exibir em sala de aula um filme baseado numa obra e acreditar que os alunos estão dispensados de ler o livro.

*Raquel Cozer escreve aos sábados a coluna “Sábatico” para o jornal O Estado de São Paulo e tem um blog chamado “A Biblioteca de Raquel”. O texto acima foi publicado no dia 29 de janeiro de 2011.