Para marcar os mais de 50 anos das obras Guerra e Paz de Portinari, o FalaCultura trouxe uma entrevista inédita com o filho do pintor. Acompanha a matéria a seguir:
Há 54 anos, a mais poderosa obra de Cândido Portinari - os painéis Guerra e Paz - deixavam o Brasil a caminho de seu lar definitivo: a sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York.
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Agora, pela primeira vez em mais de meio século, o povo – primeiro do Brasil, e depois, do mundo – poderá ver pessoalmente toda força humana, e a grande mensagem de esperança e paz pintada sobre os grandes painéis. Graças ao trabalho do Projeto Portinari, a obra fará uma turnê por diversas cidades, até o ano de 2013, quando será devolvida à ONU.
Guerra e Paz
Guerra e Paz são dois painéis de aproximadamente 14 por 10 metros cada, pintados a óleo sobre madeira compensada naval. Enquanto um representa todos os males e horrores da guerra, o segundo representa uma visão éterea e esperançosa dos tempos de paz, criando um expressivo contraste.
A obra foi encomendada pelo governo brasileiro, para presentear a ONU, e receberam quatro anos de dedicação de Cândido Portinari – que trabalhou incessantemente para concluí-las, apesar de já saber que estava sendo envenenado pelas toxinas presentes em suas tintas.
Infelizmente, Portinari não pôde presenciar a inauguração dos painéis em Nova York – devido ao seu envolvimento com o Partido Comunista, ele foi impedido de entrar nos EUA, que vivia o período da Guerra Fria.
No Memorial da América Latina
Por questões de segurança, o saguão do edifício da ONU, onde os painéis foram instalados, é umambiente bastante inacessível ao público. Contudo, agora, com o anúncio de uma grande reforma do edifício das Nações Unidas, surgiu uma oportunidade inédita de expor os painéis em outros países.
Em 2010, Guerra e Paz finalmente chegou às terras brasileiras. Então, permaneceram expostas noTheatro Municipal do Rio de Janeiro - o que remeteu à cerimônia realizada antes da partida dos painéis para Nova York, em 1956, no mesmo teatro. Em 12 dias, a exposição atraiu mais de 44 mil visitantes.
A partir de amanhã (7), será a vez de São Paulo conhecer a grandiosa obra. O local escolhido é o Salão dos Atos, no Memorial da América Latina. Além dos painéis – que serão expostos pela primeira vez após sua restauração – o público poderá desfrutar de 100 estudos preparatórios originais para a realização da obra. A exposição permanecerá aberta até 21 de abril.
Divulgação
Para marcar esse momento marcante nas artes visuais do nosso país, conversamos com exclusividade com João Cândido Portinari, filho de Cândido Portinari e diretor do Projeto Portinari. Confira:
[FalaCultura] – Imagino que o processo de trazer Guerra e Paz para o Brasil deve ter sido bastante complicado, tanto pelas dimensões da obra quanto pelas negociações envolvidas. Nos conte um pouco de como foi todo esse trabalho.
[João Cândido Portinari] - Bom, o processo todo começou há dez anos, em 2002. Estávamos preparando as comemorações do Centenário de Portinari, que seria no ano seguinte [2003], e surgiu essa ideia de expor os estudos preparatórios junto com os painéis, lá na sede das Nações Unidas.
Acontece que os atentados terroristas contra o World Trade Center estavam muito recentes, foram apenas no ano anterior, e as normas de segurança estavam mais rígidas. Então percebemos que seria inviável realizar a exposição naquele espaço.
Em 2007, voltei a Nova York para entregar o livro sobre Guerra e Paz para cada um dos delegados da ONU. Essas era uma forma de tirar os painéis do “armário”, trazê-los à luz novamente.
[FC] – Trazê-los à tona?
[JCP] - Exatamente. Os painéis vivem um paradoxo. Eles são “invisíveis”, inacessíveis ao público.
Você sabe que tradicionalmente, são os brasileiros que abrem as sessões da ONU, com um discurso. Pesquisei, li cada um desses discursos, e nenhum citava Guerra e Paz. Foi só em 2007, que o presidente Lula encerrou seu discurso nas Nações Unidas com uma citação à obra.
“Ao entrar neste prédio, os delegados podem ver uma obra de arte presenteada pelo Brasil às Nações Unidas há 50 anos. Trata-se dos murais ‘Guerra’ e ‘Paz’, pintados pelo grande artista Cândido Portinari (…) A mensagem do artista é singela, mas poderosa: transformar aflições em esperança, guerra em paz, é a essência da missão das Nações Unidas. O Brasil continuará a trabalhar para que essa expectativa tão elevada se torne realidade.” (Luís Inácio Lula da Silva, em discurso na ONU, em 2007)
Guerra e Paz prova que Portinari não trabalha com o abstrato, a obra traz uma mensagem ética muito forte, que continua atual, talvez até mais válida do que nunca.
Cristina Granato | Divulgação
[FC] – E quando surgiu a ideia de trazer os painéis para o Brasil?
[JCP] – Quando fui à ONU em 2007, para entregar os livros aos delegados, eu soube da reforma no edifício, que seria de 2009 a 2013. Assim que voltei ao Brasil, percebi que aquela seria uma oportunidade única de conseguirmos a guarda dos painéis durante o período da reforma.
Entramos em contato com o governo, e o ministro Celso Amorim fez uma solicitação oficial à ONU. É claro que, para conseguirmos a guarda de Guerra e Paz, eles fizeram muitas exigências, como a restauração dos painéis e um seguro. Nesse processo, foi essencial o apoio do governo, e principalmente o empenho do vice presidente José de Alencar.
Conseguimos cumprir todas as exigências, e, em 22 de dezembro de 2010, fizemos uma cerimônia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Essa cerimônia me lembrou muito a cerimônia inaugural de 1956, a que estive presente, que também foi no Theatro Municipal e contou com a presença do presidente Juscelino Kubitchek.
Depois da breve exposição no Theatro Municipal, que atraiu mais de 44 mil visitantes, a obra seguiu pararestauro em ateliê aberto, também no Rio de Janeiro. Agora, em São Paulo, será a primeira vez que ela será exposta junto dos estudos preparatórios.
[FC] – E quanto ao Projeto Portinari? É um assunto recorrente a dificuldade enfrentada para manter os legados dos artistas brasileiros – e, nesse cenário, o Projeto Portinari é um exemplo de sucesso. Qual é o segredo, na sua opinião?
[JCP] - Já estamos há 33 anos trabalhando no Projeto, e é uma luta mantê-lo de pé. O apoio à cultura no Brasil ainda é complicado. Mas já conseguimos grandes conquistas: por exemplo, catalogamos 5.200 obras e 30.000 documentos relacionados a Portinari, e disponibilizamos uma grande parte desse material no site do Projeto Portinari, aberto, gratuito e que é muito consultado.
“Guerra e Paz traz uma mensagem ética muito forte, que continua atual, talvez até mais válida do que nunca.”Acho que um fator que ajudou muito na continuidade do Projeto é a própria solidariedade natural do brasileiro. Sempre encontramos muito apoio, tanto para trazer o Guerra e Paz quanto em outros, o que foi essencial.
Outro fator determinante é que o Projeto Portinari foi nascido e criado na universidade. Curiosamente, muitos projetos passam ao largo da universidade. Mas essa proximidade com o ambiente universitário permitem uma constante inovação, estamos sempre em contato com todas as novidades, inclusive de ciência e tecnologia que podem ser aplicadas ao nosso projeto.
[FC] – Só para encerrar nossa entrevista, existe algum recado que você gostaria de deixar aos nossos leitores paulistanos, do que eles podem esperar da exposição que começa amanhã?
[JCP] – Que eles não deixem de ir, porque ela está muito emocionante. Certamente, sairão da exposição carregando essa mensagem de humanidade, e com uma visão mais ampla.
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