segunda-feira, 13 de junho de 2011

A Internet vem ressuscitando alguns hábitos milenares

Alex Castro*

Antigamente, quando escrever não era profissão nem gerava benefícios concretos, era praxe atribuir textos a autores mais famosos. Nem Moisés escreveu o Gênese, nem Salomão, o Cântico dos Cânticos. Mas seus autores acharam que o trabalho seria levado mais a sério se “endossado” por personalidades de prestígio.
A estratégia não poderia ter sido mais bem-sucedida: ambos são textos canônicos para boa parte da humanidade. Naquela época, aliás, o próprio processo de disseminação dos escritos era caótico e irregular: cada obra tinha que ser copiada individualmente e sabe-se lá as distorções que cada copista acrescentava.
Com o advento da imprensa, tudo mudou. Cervantes começou a escrever Dom Quixote enquanto estava preso por seus credores. Ele seguiu todos os trâmites da lei para registrar a autoria da obra e, graças a isso, viveu seus últimos anos em conforto - e sem dívidas. Na nossa época de produção em massa de livros, os autores fazem questão de se identificar e amealhar os frutos pecuniários do seu trabalho.
E lá veio a Internet mudar tudo mais uma vez. Pessoas que jamais teriam acesso a uma editora - ou a um copista medieval - agora podem disseminar livremente seus textos. E como tornar aquela sua crônica bobinha sobre uma família classe média em algo respeitável? Simples: assine Luís Fernando Veríssimo.
Essas fraudes, apesar de dolorosamente óbvias, acabam sendo aceitas pela maioria dos leitores. Não é de se surpreender, como exposto em outra coluna, que matérias de sites humorísticos como o Cocadaboa sejam retransmitidas sem menção da fonte e tomadas como a mais sacramentada verdade.
Entretanto, esse fenômeno antigo, devidamente ressuscitado pela Internet, está ameaçando arrastar aos tribunais brasileiros o nome de uma de nossas maiores autoras: Clarice Lispector.

Mude, de Edson Marques ou Clarice Lispector
Em 2001, a agência publicitária Leo Burnett criou uma campanha para comemorar os 25 anos da Fiat no Brasil. Um dos pontos altos do comercial era um belíssimo poema sendo narrado em off. Em release divulgado pela agência, o poema é atribuído à Clarice Lispector. Uma matéria no Estado de São Paulo chegava a dizer: “O publicitário Alexandre Skaff mergulhou na obra de Clarice Lispector e achou inspiração nos versos de Mude para criar o filme de 25 anos da Fiat”.
Entretanto, o poema Mude, de larga circulação na Internet, já foi atribuído, além de à Clarice, também a Paulo Coelho e Cecília Meireles. Paulo Coelho, com integridade, elogiou o poema, mas não o reconheceu como seu. Cecília e Clarice, falecidas, não tiveram chance de fazer o mesmo.
O poeta Edson Marques afirma ser o autor da poesia, registrada por ele na Biblioteca Nacional. Além disso, Mude também já foi interpretada por Antonio Abujamra, na peça Mefistófeles, e por Pedro Bial, no CD Filtro Solar, da Sony Music, sempre creditada a Edson Marques. Matéria da Veja, de julho de 2003, também cita a poesia Mude como sendo de Edson, apesar de comumente atribuída a Clarice.
Talvez tudo seria mais fácil se Edson fosse um autor à moda antiga. Mas Mude nunca foi publicada em meio impresso. A poesia existe na Internet, nos sites de Edson e em diversos outros sites que a atribuem a ele.
Conversei longamente com o Edson. Ele diz não querer dinheiro de ninguém. Só deseja que a Leo Burnett faça uma retratação pública do release onde afirma que Mude é obra de Clarice.
A Leo Burnett não quis comentar o assunto. Sua posição oficial é que comprou os direitos de uso do poema legalmente do herdeiro de Clarice Lispector. Ponto.
A Rocco, editora de Clarice Lispector, também tirou o corpo fora: disse ser somente responsável pelos direitos de publicação da obra da autora. Uma agência que desejasse direitos de licenciamento para um comercial teria que negociar diretamente com o herdeiro.
Edson está oferecendo US$10 mil para quem provar que Mude é de Clarice. Nenhum voluntário se apresentou. Na obra completa da autora, não há livros de poesia. Além disso, fontes extra-oficiais dentro da Leo Burnett me confirmaram que Alexandre Skaff realmente encontrou a poesia enquanto navegava na Internet. Mais uma vez, a Internet. Será ela a culpada de tudo?

Alex Castro é editor do seu “Guia de Blog” na Internet

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